Mariana, 9 anos após desastre: famílias sem casa, pesca proibida, ninguém punido; 9 pontos para entender a tragédia
Rompimento da barragem de Fundão completa nove anos nesta terça-feira (5).
Quase uma década depois, os impactos da tragédia ainda são sentidos.
Mais de 100 famílias que tiveram de deixar as próprias casas ainda não foram reassentadas.
Pesca continua proibida em vários pontos ao longo da bacia do Rio Doce.
Ninguém foi responsabilizado criminalmente pelo desastre.
O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, completa nove anos nesta terça-feira (5).
Em 5 de novembro de 2015, o derramamento imediato de aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração destruiu comunidades e modos de sobrevivência. A lama contaminou o Rio Doce e afluentes e chegou ao Oceano Atlântico, no Espírito Santo. Ao todo, 49 municípios foram atingidos, direta ou indiretamente, e 19 pessoas morreram.
Quase uma década depois, os impactos da tragédia ainda são sentidos. Mais de 100 famílias que tiveram de deixar suas casas por causa da avalanche de rejeitos não foram reassentadas. A pesca segue proibida em vários pontos ao longo da bacia do Rio Doce, e a presença de metais persiste na costa marinha do Espírito Santo e da Bahia. Até hoje, ninguém foi responsabilizado criminalmente pelo desastre.
Veja, abaixo, nove pontos para entender o caso e a situação atual:
1. Processo criminal
Nove anos depois, ninguém foi responsabilizado criminalmente pelo rompimento da barragem. Os réus foram interrogados no fim do ano passado, e os autos estão conclusos para julgamento, o que significa que a sentença pode sair a qualquer momento.
A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) foi apresentada em outubro de 2016, contra 22 pessoas e quatro empresas.
Entre as pessoas físicas, 21 foram denunciadas por homicídio qualificado, inundação, desabamento, lesões corporais graves e crimes ambientais, e uma, por apresentação de laudo ambiental falso. Samarco, Vale e BHP foram denunciadas por crimes ambientais, e a VogBR, consultoria que atestou a estabilidade da estrutura, por apresentação de laudo ambiental falso.
Em novembro do mesmo ano, a denúncia foi recebida pela Justiça Federal. No entanto, apesar das mortes causadas pelo rompimento da barragem, os réus não respondem mais por homicídio.
Em 2019, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) retirou a acusação de homicídio e lesão corporal de todos os réus. As mortes foram consideradas consequências da inundação causada pelo rompimento.
Além disso, ao longo dos anos, a Justiça trancou a ação penal com relação a vários réus, ou seja, muitas pessoas que tinham sido denunciadas não respondem mais pela tragédia. Devido à demora no julgamento, alguns crimes ambientais prescreveram.
Agora, o processo tem 11 réus – as quatro empresas e as seguintes pessoas físicas:
Ricardo Vescovi de Aragão (diretor-presidente da Samarco à época do desastre);
Kleber Luiz de Mendonça Terra (diretor de operações e infraestrutura da Samarco);
Germano Silva Lopes (gerente operacional da Samarco);
Wagner Milagres Alves (gerente operacional da Samarco);
Daviely Rodrigues Silva (gerente operacional da Samarco);
Paulo Roberto Bandeira (representante da Vale na Governança da Samarco);
Samuel Paes Loures (engenheiro da VogBR).
Os cinco primeiros respondem por inundação qualificada, desabamento e crimes ambientais. Paulo Roberto Bandeira, por três crimes ambientais, e Samuel Paes Loures, por um.
2. Situação ambiental
O rompimento da barragem de Fundão é considerado a maior tragédia ambiental do Brasil por causa do alcance e da dimensão dos danos. Aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeito de mineração foram despejados de uma vez na bacia do Rio Doce, causando um enorme rastro de destruição.
Os primeiros locais atingidos pelo lamaçal foram o Córrego de Fundão e o Córrego Santarém. Em seguida, o tsunami soterrou o subdistrito de Bento Rodrigues, onde 19 pessoas morreram.
Na sequência, a onda de lama chegou ao Rio Gualaxo do Norte, percorreu 55 quilômetros até o afluente Rio do Carmo e atingiu várias comunidades rurais: Paracatu de Baixo, Camargos, Águas Claras, Pedras, Ponte do Gama e Gesteira, assim como os municípios mineiros de Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado. Plantações, pastagens e a qualidade do solo foram afetadas pelos sedimentos contaminados.
Depois de mais 22 quilômetros, a lama encontrou o Rio Doce. Pelo curso da bacia hidrográfica, os rejeitos foram carreados até a foz, em Linhares, no Espírito Santo, e chegaram ao Oceano Atlântico.
Ao longo do trajeto, a deposição de rejeitos sobre o leito dos rios e em vastas áreas marginais ocasionou a degradação de dois mil hectares pertencentes a cerca de 200 fazendas e 1.469 hectares de vegetação natural, além da morte de milhares de animais, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
Nove anos depois, pesquisadores constataram a presença de metais provenientes do rompimento da barragem em todos os níveis de vida estudados na foz do Rio Doce e na costa marinha do Espírito Santo e Sul da Bahia.
Entre os animais impactados estão peixes, aves, tartarugas, toninhas e até baleias. De acordo com os cientistas, as consequências são diversas, como a contaminação da água e da vida marinha no litoral, passando pelo nascimento de bichos com anomalias e desenvolvimento de tumores.
Ao longo da Bacia do Rio Doce, a pesca continua proibida em vários pontos, sobretudo pela presença de contaminantes e a necessidade de um manejo sustentável de espécies nativas.
Além disso, cerca de 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos permanece depositada no reservatório da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves (Candonga). A preocupação das autoridades é que, durante períodos de chuva intensa, os sedimentos agravem a dispersão de metais pesados pelos cursos d’água, ocasionando novas contaminações.
Como forma de reparação aos danos ambientais, a Samarco se comprometeu a adotar algumas ações compensatórias, como:
Reflorestamento de 50 mil hectares e gestão da área impactada;
Conclusão da recuperação de 5 mil nascentes, restauração de margens e do ambiente aquático e saneamento e qualidade da água na bacia;
Estudos de viabilidade para retirada adicional de sedimentos da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves (Candonga);
Intervenção e recuperação ambiental do Dique S4;
Plano de Recuperação de áreas degradadas para recuperação ambiental de Bento Rodrigues.
3. Reassentamento
Até hoje, mais de 100 famílias que tiveram de deixar suas casas por causa do rompimento da barragem não foram reassentadas.
O “mar de lama” causou a destruição das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, e também de Gesteira, no município vizinho de Barra Longa.
Segundo a Fundação Renova, de um total de 729 casos com direito a reassentamento, incluindo casas, comércios, sítios, lotes e bens coletivos, 610 foram “resolvidos”, por meio de entrega do imóvel ou pagamento de indenização.
O novo Bento Rodrigues foi construído em uma área localizada a cerca de 10 km do antigo, onde hoje cresce mato em meio aos destroços. Dos 246 imóveis previstos, 156 foram entregues aos moradores. Outros 54 estão com as obras finalizadas, de acordo com a Renova.
Já no novo Paracatu, 61 de um total de 93 imóveis foram entregues. As obras de outros 23 estão concluídas.
Em Gesteira, o modelo de reassentamento é diferente: um acordo estabeleceu a transferência de R$ 126 milhões da Fundação Renova para a prefeitura, que será responsável pelas obras de infraestrutura e urbanização.
Em nota, o município afirmou que recebeu R$ 57,7 milhões – o restante foi destinado a indenizações aos atingidos ou ações de atendimento a eles. Segundo a prefeitura, a construção das moradias ficará “a cargo de cada família atingida, que receberá seu lote/terreno”.
4. Novo acordo
Em 2016, no ano seguinte ao da tragédia, a Samarco e suas controladoras, Vale e BHP, firmaram um acordo com os entes públicos para a reparação dos danos e a compensação dos impactos causados, por meio da Fundação Renova.
No entanto, as ações executadas até o momento são consideradas insuficientes. Nove anos depois, mais de 100 famílias que foram obrigadas a sair de casa ainda não foram reassentadas. As instituições de Justiça também apontam problemas no pagamento de indenizações aos atingidos e na recuperação do meio ambiente.
Por isso, um novo acordo, que começou a ser costurado há mais de três anos, foi assinado entre as partes no último dia 25, após uma série de impasses em relação a cláusulas e valores. O documento prevê um total de R$ 170 bilhões em ações de reparação, incluindo R$ 38 bilhões já gastos.
Cerca de R$ 100 bilhões serão repassados para União, estados de Minas Gerais e Espírito Santo para iniciativas como fortalecimento da atividade pesqueira, saneamento básico, investimentos em infraestrutura e melhoria da qualidade ambiental na bacia do Rio Doce.
Parte do dinheiro também será destinada aos municípios atingidos e a programas geridos pelas instituições de Justiça. O montante será pago em parcelas anuais ao longo de 20 anos.
Outros R$ 32 bilhões serão investidos pelas próprias empresas em ações de reassentamento, indenizações individuais, recuperação ambiental e pagamento de multas impostas pelo poder público.
5. Indenização
De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), a tragédia deixou cerca de 2,5 milhões de atingidos em 49 municípios, na calha do Rio Doce e na região costeira.
Por enquanto, 447,2 mil acordos de indenização foram fechados, ao custo de R$ 18,04 bilhões, sendo que R$ 2,99 bilhões são referentes a auxílios financeiros emergenciais, segundo a Fundação Renova.
O novo acordo de reparação dos danos, assinado em outubro, prevê a conclusão do processo indenizatório, por meio do Programa Indenizatório Definitivo (PID).
Serão pagos R$ 35 mil a atingidos ainda não contemplados. São elegíveis, por exemplo, pessoas que já abriram processos indenizatórios junto à Fundação Renova e tiveram os pedidos negados.
“Muitos ainda não receberam nada, e a partir de agora haverá essa transferência de renda. E um ponto muito importante é que nós vamos retirar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais mais de 40 mil ações que correm hoje”, afirmou o governador Romeu Zema (Novo) em entrevista à TV Globo nesta segunda-feira (4).
6. Ação na Justiça inglesa
Em 2018, milhares de atingidos pelo rompimento da barragem entraram com uma ação civil pública contra a BHP Billiton na Justiça inglesa — na época da tragédia, a mineradora estava listada na Bolsa de Valores de Londres.
No entanto, a corte decidiu dar prosseguimento ao processo somente em julho de 2022 e marcou o julgamento para este ano. As audiências começaram no último 21 de outubro.
Cerca de 620 mil autores, incluindo municípios, comunidades indígenas, igrejas e empresas, reivindicam cerca de 36 bilhões de libras esterlinas em indenizações, o que é equivalente a aproximadamente R$ 266 bi na cotação atual da moeda.
O escritório Pogust Goodhead, responsável pela defesa das vítimas, alega que a BHP tinha conhecimento dos riscos de rompimento da barragem e, como acionista da Samarco, deve responder pelos danos causados.
Veja o cronograma previsto para o julgamento:
28 de outubro a 14 de novembro: interrogatório das testemunhas da BHP;
18 de novembro a 19 de dezembro: oitiva de especialistas em direito civil, societário e ambiental brasileiros;
20 de dezembro a 13 de janeiro: recesso;
13 a 16 de janeiro: oitiva de especialistas em questões geotécnicas e de licenciamento;
17 de janeiro a 23 de fevereiro: preparação das alegações finais;
24 de fevereiro a 5 de março: apresentarão das alegações finais.
De acordo com o escritório, a expectativa é que a sentença seja proferida em meados de 2025.
Se a BHP for condenada a pagar indenizações, a Vale, acionista brasileira da Samarco, vai arcar com metade do montante. Em julho, as duas companhias fecharam um acordo em relação às ações judiciais em curso na Europa e combinaram que, em caso de condenação em qualquer um dos processos, vão dividir igualmente entre si os valores devidos.
Além da ação no Reino Unido, ajuizada contra a BHP, há uma em andamento na Justiça holandesa, em que a Vale é a ré — nesse caso, os atingidos pedem mais de R$ 18 bilhões em indenizações.
7. A Samarco hoje
Em outubro de 2019, a Samarco obteve autorização para retomar as atividades no complexo de Germano, em Mariana. Dez dos 12 conselheiros da Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) votaram a favor da concessão da Licença de Operação Corretiva (LOC) à mineradora, válida por dez anos.
Mas a empresa só voltou a operar mesmo em dezembro de 2020, mais de cinco anos depois da tragédia, sem utilizar barragens e, inicialmente, com uma produção correspondente a 26% da capacidade.
Atualmente, a Samarco opera com 30% da capacidade, o que equivale a cerca de 9 milhões de toneladas de pelotas e finos de minério de ferro produzidos por ano. A expectativa da mineradora é alcançar 60% de capacidade até o fim deste ano, e 100%, até 2028.
8. Lei de barragens
Após o rompimento, o Ministério Público intermediou um projeto de lei de iniciativa popular, chamado Mar de Lama Nunca Mais, para instituir uma política estadual de segurança de barragens. Ele recebeu cerca de 60 mil assinaturas e foi apresentado, em junho de 2016, à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Apesar dos esforços empreendidos, a tramitação do projeto não avançava. Com o colapso da barragem de Brumadinho, em 2019, o MP intensificou a atuação junto aos parlamentares mineiros em defesa do PL, o que culminou na aprovação da Lei 23.291.
O novo marco regulatório trouxe aprimoramentos para a disposição de rejeitos de mineração no estado, como:
Proibição de construção de barragens a montante;
Proibição do alteamento de barragens em locais onde forem identificadas comunidades nas zonas de autossalvamento (ZAS);
Determinação de descaracterização de todas as barragens a montante em MG;
Previsão de uma caução ambiental, que obriga o empreendedor a garantir os custos da desativação das barragens e dos possíveis danos socioambientais e socioeconômicos que um desastre envolvendo tais estruturas possa ocasionar;
Exigência de planos de segurança com relatórios técnicos e inspeções frequentes;
Monitoramento e auditorias com maior frequência e transparência, permitindo o acesso público a dados de barragens.
No âmbito federal, as discussões sobre os riscos das estruturas de mineração levaram à aprovação, em 2020, da Lei 14.066, que instituiu a nova Política Nacional de Segurança das Barragens (PNSB).
A legislação proibiu a construção de barragens do tipo “a montante”, como as utilizadas em Brumadinho e Mariana, no país inteiro. Além disso, todas as estruturas construídas desta forma receberam um prazo para serem desativadas.
9. Setor de mineração em MG
De acordo com o Ministério Público, Minas Gerais já descaracterizou 19 barragens a montante desde 2019. A previsão é que outras 35 estruturas tenham as operações encerradas até 2035.
Das 54 barragens a montante existentes no estado, apenas dez foram descaracterizadas dentro do prazo legal. Uma articulação entre o MP, o MPF e o Executivo estadual resultou na assinatura de 18 termos de compromisso com as empresas responsáveis, além do pagamento de R$ 426 milhões por danos morais coletivos.
Veja a linha do tempo sobre a tragédia de Mariana:
O que dizem as empresas
Samarco
“A Samarco lamenta profundamente o rompimento da barragem de Fundão, um marco que jamais será esquecido. Com a assinatura do Acordo de Repactuação em 25 de outubro, em fase de homologação, a empresa reforça seu compromisso com a reparação e compensação integral e definitiva dos danos causados às pessoas, comunidades e ao meio ambiente. O acordo legitima o Brasil como um ambiente jurídico adequado para concluir a reparação.
Do valor global de R$ 170 bilhões, R$ 100 bilhões serão repassados pela Samarco ao Poder Público para financiar as ações de políticas públicas convergentes com a reparação. Outros R$ 32 bilhões serão executados pela empresa para concluir as indenizações, reassentamentos e recuperação ambiental. Cerca de R$ 38 bilhões foram destinados até setembro de 2024 para ações de reparação e compensação executadas pela Fundação Renova.”
Vale
“A Vale, como acionista da Samarco, reforça o seu compromisso com a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão. A empresa seguirá apoiando a execução do acordo definitivo, anunciado no dia 25 de outubro, e entende que os termos acordados garantem uma solução eficiente e segura para as pessoas e territórios atingidos e para o meio ambiente.
Importante registrar que, até o momento, já foram indenizadas aproximadamente 430.000 pessoas, incluindo povos indígenas e comunidades tradicionais, com mais de R$ 17 bilhões para indenizações e auxílio financeiro emergencial para as pessoas atingidas. No total, já foram investidos R$ 38 bilhões entre indenizações, ações de compensação, reparação do meio ambiente e infraestruturas impactadas.”
Fundação Renova
“A Fundação Renova informa que até setembro de 2024 foram destinados R$ 38,28 bilhões às ações de reparação e compensação. Desse valor, R$ 15,05 bilhões foram para o pagamento de indenizações e R$ 2,99 bilhões em Auxílios Financeiros Emergenciais, totalizando R$ 18,04 bilhões em 447,2 mil acordos. Ações integradas de restauração florestal, recuperação de nascentes e saneamento estão acontecendo ao longo da bacia e visam à melhoria da qualidade da água.
Os distritos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu são uma realidade, com pessoas morando, comércios instalados, serviços de abastecimento de água e esgoto em operação, celebrações religiosas e manifestações culturais da comunidade regulares. Até 11 de outubro de 2024, mais de 86% dos imóveis em Novo Bento Rodrigues e Paracatu estão construídos, e 217 foram entregues às famílias. Ao todo, 610 casos (83%) foram solucionados nas modalidades de reassentamentos coletivo e familiar ou o pagamento de indenização.”
O g1 também entrou em contato com BHP, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.